O que é Metafísica? Richard Taylor É costume dizer-se que cada um tem sua Filosofia e
até que todos os homens têm opiniões metafísicas. Nada poderia ser
mais tolo. É verdade que todos os homens têm opiniões, e que algumas
delas - tais como as opiniões sobre religião, moral e o significado da
vida - confinam com a Filosofia e a Metafísica, mas raros são os
homens que possuem qualquer concepção de Filosofia e ainda menos os
que têm qualquer noção de Metafísica. William James definiu algures a Metafísica como
"apenas um esforço extraordinariamente obstinado para pensar com
clareza". Não são muitas as pessoas que assim pensam, exceto
quando seus interesses práticos estão envolvidos. Não têm
necessidade de assim pensar e, daí, não sentem qualquer propensão
para o fazer. Excetuando algumas raras almas meditativas, os homens
percorrem a vida aceitando como axiomas, simplesmente, aquelas questões
da existência, propósito e significado que aos metafísicos parecem
sumamente intrigantes. O que sobretudo exige a atenção de todas as
criaturas, e de todos os homens, é a necessidade de sobreviver e, uma
vez que isso fique razoavelmente assegurado, a necessidade de existir
com toda a segurança possível. Todo pensamento começa aí, e a sua
maior parte cessa aí. Sentimo-nos mais à vontade para pensar como
fazer isto ou aquilo. Por isso a engenharia, a política e a indústria
são muito naturais aos homens. Mas a Metafísica não se interessa, de
modo algum, pelos "comos" da vida e sim apenas pelos
"porquês", pelas questões que é perfeitamente fácil jamais
formular durante uma vida inteira. Pensar metafisicamente é pensar, sem arbitrariedade
nem dogmatismo, nos mais básicos problemas da existência. Os problemas
são básicos no sentido de que são fundamentais, de que muita coisa
depende deles. A religião, por exemplo, não é Metafísica; e,
entretanto, se a teoria metafísica do materialismo fosse verdadeira, e
assim fosse um fato que os homens não têm alma, então grande parte da
religião soçobraria diante desse fato. Também a Filosofia Moral não
é Metafísica e, entretanto, se a teoria metafísica do determinismo,
ou se a teoria do fatalismo fossem verdadeiras, então muitos dos nossos
pressupostos tradicionais seriam refutados por essas verdades.
Similarmente, a Lógica não é Metafísica e, entretanto, se se
apurasse que, em virtude da natureza do tempo, algumas asserções não
são verdadeiras nem falsas, isso acarretaria sérias implicações para
a Lógica tradicional. Isto sugere, contrariamente ao que em geral se supõe,
que a Metafísica vê um alicerce da Filosofia e não o seu coroamento.
Se for longamente exercido. o pensamento filosófico tende a resolver-se
em problemas metafísicos básicos. Por isso o pensamento metafísico é
difícil. Com efeito, seria provavelmente válido afirmar que o fruto do
pensamento metafísico não é o conhecimento, mas o entendimento. As
interrogações metafísicas têm respostas e, entre as várias
respostas concorrentes, nem todas poderão ser verdadeiras, por certo.
Se um homem enuncia uma teoria de materialismo e um outro a nega, então
um desses homens está errado; e o mesmo acontece a todas as outras
teorias metafísicas. Contudo, só muito raramente é possível provar e
conhecer qual das teorias é a verdadeira. 0 entendimento, porém - e,
por vezes, uma profundidade muito considerável do mesmo resulta de
vermos as persistentes dificuldades em opiniões que freqüentemente
parecem, em outras bases, ser muito obviamente verdadeiras. É por essa
razão que um homem pode ser um sábio metafísico sem que, não
obstante, sustente suas opiniões e juízos em conceitos metafísicos.
Tal homem pode ver tudo o que um dogmático metafísico vê, e pode
entender todas as razões para afirmar o que outro homem afirma com
tamanha confiança. Mas, ao invés do outro, também vê algumas razões
para duvidar e, assim, ele é, como Sócrates, o mais sábio, mesmo em
sua profissão de ignorância. Advirta-se o leitor, neste particular, de
que quando ouvir um filósofo proclamar qualquer opinião metafísica
com grande confiança, ou o ouvir afirmar que determinada coisa, em
Metafísica, é óbvia, ou que algum problema metafísico gravita apenas
em torno de confusões de conceitos ou de significados de palavras, então
poderá estar inteiramente certo de que esse homem está infinitamente
distante do entendimento filosófico. Suas opiniões parecem isentas de
dificuldades apenas porque ele se recusa obstinadamente a ver
dificuldades. Um problema metafísico é indispensável dos seus
dados, pois são estes que, em primeiro lugar, dão origem ao problema.
Ora o datum, ou dado,
significa literalmente algo que nos é oferecido, posto à nossa disposição.
Assim, tomamos como dado de um problema certas convicções elementares
do senso comum que todos ou a maioria dos homens estão aptos a
sustentar com alguma persuasão íntima, antes da reflexão filosófica,
e teriam relutância em abandonar. Não são teorias filosóficas. pois
estas são o produto da reflexão filosófica e, usualmente, resultam da
tentativa de conciliar certos dados entre si. São, pelo contrário,
pontos de partida para teorias, as coisas por onde se começa, visto
que, para que se consiga alguma coisa, devemos começar
por alguma coisa, e não se pode gastar o tempo todo apenas começando.
Observou Aristóteles: "Procurar a prova de assuntos que já
possuem evidência mais clara do que qualquer prova pode fornecer é
confundir o melhor com o pior, o plausível com o implausível e o básico
com o derivativo," (Física,
Livro VIII, Cap. 3 ) . Exemplos de dados metafísicos são as crenças
que todos os homens possuem, independentemente da Filosofia, de que
existem, de que tem um corpo, de que lhes cabe algumas vezes uma opção
entre cursos alternativos de ação, de que por vezes deliberam sobre
tais cursos, de que envelhecem e morrerão algum dia etc. Um problema
metafísico surge quando se verifica que tais dados não parecem
concordar entre si, que têm. aparentemente, implicações que não se
revestem de coerência entre si. A tarefa, então, é encontrar alguma
teoria adequada à remoção desses conflitos. Talvez convenha observar que os dados, como os
considero, não são coisas necessariamente verdadeiras nem evidentes em
si mesmas. De fato, se o conflito entre certas convicções do senso
comum não for tão-só aparente, mas real, então algumas dessas convicções
estão fadadas a ser falsas, embora possam, não obstante, ser tidas na
conta de dados até que sua falsidade se descubra. É isso o que torna
excitante, por vezes, a Metafísica; nomeadamente o fato de sermos
coagidos, algumas vezes, a abandonar certas opiniões que sempre havíamos
considerado óbvias. Contudo, a Metafísica tem de começar por alguma
coisa e, como não pode começar, obviamente, pelas coisas que já estão
provadas, deve começar pelas coisas em que as pessoas acreditam; e a
confiança com que uma pessoa sustenta suas teorias metafísicas não
pode ser maior do que a confiança que deposita nos dados em que aquelas
repousam. Ora, o intelecto do homem não é tão forte quanto a
sua vontade, e os homens, geralmente, acreditam no que querem acreditar,
particularmente quando essas crenças refletem o mérito próprio entre
os homens e o valor de seus esforços. A sabedoria
não é, pois, o que os homens buscam em primeiro lugar. Procuram,
outrossim, uma justificação para aquilo em que crêem seja o que for.
Não surpreende, portanto, que os principiantes em Filosofia, e mesmo os
que já não são principiantes, tenham uma acentuada inclinação para
se apegarem a alguma teoria que os atrai, em face de dados conflitantes,
e neguem por vezes a veracidade dos dados, apenas por aquela razão. Tal
atitude dificilmente se pode considerar propícia à sabedoria. Assim, não
é incomum encontrarmos pessoas que, dizem elas, querem ardentemente
acreditar na teoria do determinismo e que, partindo desse desejo, negam,
simplesmente, a verdade de quaisquer dados que com ela colidam. Os
dados, por outras palavras, são meramente ajustados à teoria, em vez
da teoria aos dados. Mas deve-se insistir ainda que é pelos dados, c não
pela teoria, que se terá de começar; pois se não partirmos de
pressupostos razoavelmente plausíveis, onde irmos obter a teoria,
diferente de se esposar apenas aquilo que os nossos corações desejam'?
Mais cedo ou mais tarde poderemos ter de abandonar alguns dos dados do
nosso senso comum, mas, ao fazê-lo, será em consideração a certas
outras crenças do senso comum que relutamos ainda mais em abandonar e não
em deferência pelas teorias filosóficas que nos atraem. 0 leitor é exortado. portanto, ao acompanhar os
pensamentos que se seguem, a suspender os seus juízos sobre as verdades
finais das coisas, uma vez que, provavelmente, nem ele nem qualquer
outra pessoa sabe quais são essas verdades, e a contentar-se com a
apreciação dos problemas da Metafísica. este é o primeiro e sempre o
mais difícil passo. 0 resto da verdade, se alguma vez tiver a boa
fortuna de receber uma parte dela, chegar-lhe-á do seu próprio íntimo,
se acaso chegar, e não da leitura de livros. 0 ensaio que se segue constitui uma introdução -
literalmente, um "encaminhamento à" Metafísica. Não é uma
análise das concepções predominantes, e o leitor buscará em vão os
nomes dos grandes pensadores ou o resumo das opiniões que eles
defenderam. Os problemas metafísicos vão sendo trazidos à tona, e o
leitor é simplesmente convidado a pensar neles de acordo com as
diretrizes sugeridas. É por essa razão que, ao desenvolver os
problemas mais estreitamente associados com o eu
ou pessoa e seus poderes, particularmente nos primeiros três capítulos,
a estilisticamente discutível primeira pessoa do singular, "Eu'',
é empregada com freqüência, à maneira das Meditações de Descartes. 0 leitor compreenderá que as idéias
dessa forma apresentadas têm por intuito significar as suas próprias e
não quaisquer reflexões autobiográficas do autor. In Taylor, R. (1969): Metafísica, Rio de Janeiro: Zahar, pgs. 13-17.
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