MAQUIAVEL

 

 

É necessário a um príncipe, para se manter, que aprenda a poder ser mau e que se valha ou deixe de valer-se disso segundo a necessidade.

Como é meu intento escrever coisa útil para os que se interessarem, pareceu-me mais conveniente procurar a verdade pelo efeito das coisas, do que delas se possa imaginar. E muita gente imaginou repúblicas e principados que nunca se viram nem jamais foram reconhecidos como verdadeiros.

 

Maquiavel

 

 

1.      Formação do Estado Nacional.

 

Durante a Idade Média, como vimos, o poder do rei era sempre confrontado com os poderes da Igreja ou da nobreza. As monarquias nacionais surgem com o fortalecimento do rei e, portanto com a centralização do poder, fenômeno este que se desenvolve desde o final do século XIV (Portugal) e durante o século XV ( França, Espanha, Inglaterra).

Dessa forma surge o Estado moderno, que apresenta características específicas, tais como o monopólio de fazer e aplicar as leis, recolher impostos, cunhar moeda, Ter um exército. A novidade é que tudo isso se torna prerrogativa do governo central, o único que passa a Ter o aparato administrativo para prestação dos serviços públicos bem como o monopólio legítimo da força.

É em função desse contexto que se torna possível compreender o pensamento de Maquiavel.

 

2. A Itália dividida

 

Enquanto as demais nações européias conseguem a centralização do poder, a Alemanha e a Itália se acham fragmentadas em inúmeros Estados sujeitos a disputas internas e a hostilidades entre as cidades vizinhas. No caso da Itália, a ausência de unificação a expõe à ganância de outros países como a Espanha e França, que reivindicam territórios e assolam a península com ocupações intermináveis.

É nessa Itália dividida que vive Nicolau Maquiavel (1469-1527) na república de Florença. Observa com apreensão a falta de estabilidade política da Itália, dividida em principados e repúblicas onde cada um possui sua própria milícia, geralmente formada por mercenários condottieri ( são os comandantes que recebem uma condotta, isto é, um contrato para conduzir o exército mediante pagamento). Nem mesmo os Estados Pontifícios deixavam de formar os sues exércitos.

Maquiavel não foi apenas um intelectual que refletiu a respeito de política, pois viveu intensamente a luta de poder no período em que Florença, tradicionalmente sob a influência da família Medici, encontrava-se por uma década governada pelo republicano Soderini.

Nessa época Maquiavel ocupava a Segunda Chancelaria do governo, função que o obriga a desenvolver inúmeras missões diplomáticas na França, Alemanha e pelos diversos Estados italianos. Tem oportunidade de entrar em contato direto com reis, papas e nobres, e também com o condottiere César Bórgia, que estava empenhando na ampliação dos estados Pontifícios. Observando a maneira de Bórgia agir, Maquiavel considera o modelo de príncipe que a Itália precisa para ser unificada.

Quando Soderini é deposto e os Medici voltam à cena política, Maquiavel cai em desgraça e recolhe-se  para escrever as obras que o consagraram. Entre peças de teatro poesias, ensaios diversos, destacam-se O príncipe e Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio.

 

3.      Controvérsias sobre O Príncipe.

 

Escrito em 1513 e dedicado a Lourenço de Medici, O príncipe têm provocado inúmeras interpretações e controvérsias. Uma primeira leitura nos dá uma visão da defesa do absolutismo e do mais complexo imoralíssimo: “É necessário a um príncipe, para se manter, que aprenda a poder ser mau e que se valha ou deixe de valer-se disso segundo a necessidade”.

Essa primeira leitura apressada da obra levou à criação do mito do maquiavelismo, que tem atravessado os séculos. Esse mito não só representa a figura do político maquiavélico,mas se estende até à avaliação das atividades corriqueiras de qualquer pessoa.

Na língua comum, chamamos preparativamente de maquiavélica a pessoa sem escrúpulos, traiçoeira, astuciosa que, para atingir seus fins, usa da mentira e da má-fé, sendo capaz de enganar tão subtilmente que pode nos fazer pensar que agirmos livremente quando na verdade somos por ela manipulados. Como expressão dessa amorosidade, costuma-se vulgarmente atribuir a Maquiavel a famosa máxima “Os fins justificam os meios”. Ora, essa interpretação se mostra excessivamente simplista e deformada do pensamento maquiavelismo e, para superá-la é preciso analisar com mais atenção o impacto das inovações do seu pensamento político.

Contrapondo-o à análise projetaria do maquiavelismo, Rousseau, no século XVIII, defende o florentino afirmando que O príncipe era na verdade uma sátira, e a intenção verdadeira de Maquiavel seria o desmascaramento das práticas despóticas, ensinado, portanto, o povo a se defender dos tiranos. Tal hipóteses se sustentaria a partir da leitura dos  Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio, onde são desenvolvidas as idéias do Maquiavel republicano.

Modernamente, no entanto, tejeita-se a visão romântica de Rousseau, e a aparente contradição entre as duas obras é interpretada como de dois momentos diferentes da ação política. Em um primeiro estádio, representado pela ação do príncipe, o poder deve ser conquistado e mantido, e para tanto justifica-se o poder absoluto. Posteriormente, alcançada a estabilidade, é impossível e desejável a instalação do governo republicano.

Além disso, as idéias democráticas aparecem veladamente também no capítulo IX de O Príncipe, quando Maquiavel se refere à necessidade de o governante ter o apoio do povo, sempre melhor do que o apoio dos grandes, que podem ser traiçoeiros. O que está sendo timidamente esboçado é a idéia de consenso, que terá importância fundamental no séculos seguintes.

 

4.      O príncipe virtuoso.

 

Para descrever a ação do príncipe, Maquiavel usa as expressões italianas virtùs e fortuna. Virtù significa virtude, no sentido grego de força, valor, qualidade de lutador e guerreiro viril. Homens de virtù são homens especiais, capazes de realizar grandes obras e provocar mudanças na história.

Não se trata do príncipe virtuoso no sentido medieval. Enquanto bom e justo segundo os preceitos da moral cristã, mas sim daquele que tem a capacidade de perceber o jogo de forças que caracteriza a política para agir com energia a fim de conquistar e manter o poder. O príncipe de virtù não deve se valer das normas preestabelecidas da moral cristã, pois isso geralmente pode significar a sua ruína.

Implícita nessa afirmação se acha a noção de fortuna, aqui entendida como ocasião, acaso. O príncipe não deve deixar escapar a fortuna, isto é a ocasião. De nada adiantaria um príncipe virtuoso, se não soubesse ser precavido ou ousado, aguardando a ocasião propícia, aproveitando o acaso ou a sorte das circunstâncias, como observador atento do curso da história. No entanto, a fortuna não deve existir sem a virtù. Sob pena  de se transformar em mero oportunismo.

 

5. Ética e Política.

 

A novidade do pensamento maquiaveliano, justamente a que causou maior escândalo e críticas, está na reavaliação das relações entre ética e política. Por um lado Maquiavel apresenta uma moral laica, secular, de base naturalista, diferente da moral cristã, por outro, estabelece a autonomia da política, negando a anterioridade das questões morais na avaliação da ação política.

Para a moral cristã, predominante na Idade Média, há valores espirituais superiores aos políticos, além de que o bem comum da cidade deve se subornar ao bem supremo da salvação da alma. “A moral cristã se apoia em uma concepção do bem e do mal, do justo e do injusto, que ao mesmo tempo preexiste e transcende a autoridade do estado, cuja organização política-jurídica não deve contradizer ou violar as formas éticas fundamentais, implícitas no direito natural. O indivíduo está subordinado ao estado, mas a ação deste último se acha limitada pela lei natural ou moral que constitui uma instância superior à qual todo membro da comunidade pode recorrer sempre que o poder temporal atentar contra seus direitos essenciais inalienáveis.” (introdução ao pensamento político de Maquiavel,  p.94)

A nova ética analisa as ações não mais em função de uma hierarquia de valores dada a priori, mas sim em vista das conseqüências, dos resultados da ação política. Não se trata de um amoralismo, mas de uma nova moral centrada nos critérios da avaliação do que é útil à comunidade é o bem da comunidade, e nesse sentido às é legitimo o recuo ao mal (o emprego da força coercitiva do Estado, a guerra, a prática da espionagem, o emprego da violência). Estamos diante de uma moral imanente, mundana, que vive do relacionamento entre os homens. E se há a possibilidade de os homens serem corruptos, constitui dever do príncipe manter-se no poder a qualquer custo.

Maquiavel distingue entre a bom governo, que é forçado pela necessidade a usar da violência visando o bem coletivo, e o tirano, que age por exemplo por capricho ou interesse próprio.

O pensamento de Maquiavel nos leva à reflexão sobre a situação dramática e ambivalente do homem de ação se o indivíduo aplicar de forma inflexível o código moral que rege sua vida pessoal à vida política, sem dúvida colherá fracassos sucessivos, tronando-se um político incompetente.

Tal Afirmação pode levar as pessoas a considerar que Maquiavel estaria defendendo o político imoral, os corruptos e os tiranos. Não se trata disso. A leitura maquiaveliana sugere a superação dos escrúpulos imobilistas da moral individual, mas não rejeita a moral própria da ação política “Se o indivíduo, na sua existência privada, tem o direito de sacrificar o seu bem pessoal imediato e até sua própria vida a um valor moral superior, ditado pela sua consciência, pois em tal hipótese estará empenhado apenas seu destino particular, o mesmo não acontece com o homem de Estado, sobre o qual passam a pressão e a responsabilidade dos interesses coletivos; este, de fato, não terá o direito de tornar uma decisão que envolva o bem-estar ou a segurança da comunidade, levando em conta tão-somente as exigências da moral privada; casos haverá em que terá de violá-la para defender as instituições que representa ou garantir a própria sobrevivência da nação” (introdução ao pensamento político de Maquiavel p. 104).

Isso significa Qual a avaliação moral não deve ser feita antes da ação política, segundo normas gerais e abstratas, mas a partir de uma situação especifica que é avaliada em função do resultado dela, já que toda ação política visa a sobrevivência do grupo e não apenas de indivíduos isolados.

Por isso Maquiavel não pode ser considerado um cínico apologista da violência. O que ele enfatiza é que os critérios da ética política precisam ser revistos conforme as circunstâncias e sempre tendo em vista os fins coletivos.

No entanto, é bom lembrar que o pensamento de Maquiavel tem um sentido próprio, na medida em que ele expressa a tendência fundamental da sua época, ou seja, defesa do Estado absoluto e a valorização da política secular, não atrelada à religião. Tal vez por isso o extremo politicismo, ou seja, a hipertrofia do valor político, de cujas conseqüências últimas talvez nem ele próprio pudesse suspeitar.

Embora Maquiavel não tivesse usado o conceito de razão de Estado, é considerado o  pensador de razão de Estado, é considerado o pensador que começa a esboçar a doutrina que vigorará no século seguinte, quando o governante absoluto, em circunstâncias críticas e extremamente graves, a ela recorre permitindo-se violar normas jurídicas, morais, políticas e econômicas.

Cassier, filósofo alemão contemporâneo, observa que a experiência pessoal de Maquiavel se baseava nas pequenas tiranias italianas de século XVI, que não podem ser comparadas às monarquias absolutas do século XVII nem às nossas ditaduras modernas, o que nos faz ver hoje o maquiavelismo através de uma lente de aumento.

 

 

6. Maquiavel Republicano.

 

 

Quando estava no ostracismo político, Maquiavel se ocupa com a elaboração dos Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio, interrompendo esse trabalho por alguns meses para escrever O Príncipe.

À medida que escreve os Comentários, lê trechos nas reuniões realizadas por jovens republicanos, a quem dedica a obra. Aí desenvolve idéias democrática, admitindo que o conflito é inerente à atividade política e que esta se faz a partir da conciliação de interesses divergentes.

Defende a proposta do governo misto, “Se o príncipe, os aristocratas e o povo governam em conjunto o Estado, podem com facilidade controlar-se mutuamente”.

Considera importante que as monarquias ou repúblicas sejam governadas pelas leis e acusa aqueles que, no uso da violência, abusara da crueldade, ou  usaram para interesses.

 

 

7. A autonomia da política.

 

 

Maquiavel subverte a abordagem tradicional da teoria política feita pelos gregos e medievais e é considerado o fundador da ciência política, ao enveredar por novos caminhos “ainda não trilhados”.

Pode-se dizer que a política de Maquiavel é realista, pois procura a verdade efetiva, ou seja, “como o homem age de fato”. As observações das ações dos homens do seu tempo e dos estudos dos antigos, sobretudo da Roma Antiga, levam-no à constatação de que os homens sempre agiram pelas vias da corrupção e da violência. Partindo do pressuposto da natureza humana capaz do mal e do erro, analisa a ação política sem se preocupar em ocultar “o que se faz e não se costuma dizer”.

A esse realismo alia-se a tendência utilitarista, pela qual Maquiavel pretende desenvolver uma teoria voltada para a ação eficaz e imediata. A ciência política só tem sentido se propiciar o melhor exercício da arte política. Trata-se do começo da ciência política, da teoria e da técnica da política, entendida como disciplina autônoma.

Maquiavel torna a política autônoma porque a desvincula da ética e da religião, procurando examina-la na sua especificidade própria.

Em relação ao pensamento medieval, Maquiavel procede à secularização da política, rejeitando o legado ético-cristão. Além da desvinculação da religião, a ética política se distingue da moral privada, uma vez que a ação política deve ser julgada a partir das circunstâncias vividas, tendo em vista os resultados alcançados no busca do bem comum.

Com isso, Maquieavel se distancia da política normativa dos gregos e medievais, pois não mais busca as normas que definem o bom regime, nem explicita quais devem ser as virtudes do bom governante. Em alguns casos, como o de Platão, a preocupação em definir como deve ser o bom governo leva à construção de utopias, o que mereceu a crítica de Maquiavel.

Talvez alguém inadvertidamente se pergunte se o próprio Maquiavel não estaria à procura do príncipe ideal, indicando as normas para conquistar e não perder o poder. No  entanto, há, de fato, diferenças fundamentais entre “deve ser” da política clássica e aquele a que se refere Maquiavel.

Na nova perspectiva, para fazer política é preciso compreender o sistema de forças existentes e calcular a alteração do equilíbrio provocado pela interferência de sua própria ação nesse sistema.

 

 

Testo extraído do livro Filosofando Introdução à Filosofia

Maria Lúcia De Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins

Ed. Moderna capt.21 pag.203 a 207

 

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