Ética E Cidadania na Sociedade Tecnologia
Vivemos num mundo onde as maravilhas da tecnologia misturam-se
cada vez mais com os horrores da miséria absoluta. Sondas e naves nos
enviam informações detalhadas dos mais longínquos planetas do sistema
solar, um telescópio em órbita da Terra é capaz de nos mostrar os
instantes seguintes à própria criação do Universo tal como o
conhecemos, aviões cruzam os ares a velocidades inimagináveis, a
medicina faz progressos que, a cada dia, aumentam as expectativas do
tempo de vida das pessoas. Ao mesmo tempo, somos assolados pelo vírus
da AIDS, que mata milhões de pessoas e para o qual não conseguimos
encontrar uma vacina; doenças há muito erradicadas, como a dengue, a
febre amarela, a cólera, que vicejam apenas em condições de miséria,
mataram milhares de pessoas nas regiões mais pobres do planeta, sem que
se consiga fazer nada. Isso para não falar da fome, e das fotos
chocantes que os jornais e revistas estampam com a freqüência pedida
pelo sensacionalismo. Será que o homem, quanto mais produz conhecimento
e ganha domínio sobre a natureza, mais perde o controle sobre sua própria
vida? Como teríamos chegado a esta situação? Os três momentos de geração da sociedade tecnológica Para
atender a situação em que vivemos hoje é necessário compreender o
desenvolvimento histórico e cultural que nos trouxe até aqui. Embora
as características da sociedade tecnológica sejam únicas e um tanto
quanto recentes, elas começaram a ser desenhada há muito tempo. As
mais profundas raízes do mundo em que vivemos hoje iremos encontrar no
Renascimento, movimento histórico e cultural que durou do século XIV
ao século XVI e que significou uma grande ruptura com o mundo da Idade
Média. Para o que nos interessa aqui, é importante saber que o
Renascimento promoveu um processo que o sociológico alemão Max Weber
chamou de desencantamento do mundo. Durante
a Idade Média, o mundo era considerado sagrado ou encantado, pois foi
criado por Deus. Ora se o mundo é sagrado e traz em si o mistério de
Deus, não cabe ao homem interferir no mundo, pesquisando-o para
conhecer tais mistérios. Para as pessoas daquela época bastava saber
que o mundo havia sido criado por Deus e o homem havia sido criado para
tomar conta desta criação divina. Acontece
que essa explicação não satisfazia a curiosidade de muita gente. Para
essas pessoas não era o fato de acreditar em Deus e na sua criação
que as iria impedir de tentar compreender o “funcionamento” das
coisas, era perfeitamente possível acreditar e conhecer. As
explicações religiosas começaram então a mudar, o fato de Deus haver
criado o mundo não significava que ele seria uma continuação de Deus.
Os homens do Renascimento começaram a considerar que, embora houvesse
criado o mundo, Deus não o habitava. O mundo deixava então de ser
sagrado e podia ser examinado á vontade, pois já não era expressão
do mistério de Deus. Foi
esse momento de “desencantamento do mundo” que permitiu a criação
do método científico moderno, após séculos de animado debate filosófico.
O que os homens do Renascimento mostraram também foi que o conhecimento
das coisas pode ter grandes utilidades. É assim que surge a tecnologia
a aplicação dos conhecimentos na construção de máquinas e
equipamentos. O renascentista mais genial nesse aspecto foi, sem dúvida,
Leonardo da Vinci que, além de pintor e escultor, foi também inventor
e, dentre muitas outras coisas, projetou algo parecido com o que depois
viria a ser o helicóptero, bem como o pára-quedas, muitos séculos
antes de ser inventado o avião. Algum
século mais tarde, encontra aquele que podemos identificar como o
segundo grande momento da constituição da sociedade tecnológica, a
Revolução Industrial, que acontece primeiro na Inglaterra, e, fins do
século XVIII, e que depois se alastra por toda a Europa. A revolução
Industrial pode ser compreendida com a realização das possibilidades
tecnológicas aberturas com o Renascimento e com o método científico. Mas
qual seu significado cultural? A revolução Industrial significou a
automatização do trabalho humano, isto é, a força física que o
homem despendia no trabalho foi substituída pela energia da maquina,
movida pelo vapor e, depois, pela eletricidade. Imagine o impacto disso
sobre as pessoas, que poderiam passar a ter muito mais tempo livre, pois
as máquinas, a produtividade do trabalho aumentava incrivelmente.
Infelizmente, hoje, sabemos que isso não aconteceu bem assim, pois a
ganância do lucro levou a muito mais trabalho, a uma produção cada
vez maior. Mas isso discutiremos daqui a pouco. Com
a Revolução Industrial, o operário começa a trabalhar junto com a máquina,
a velocidade do trabalho já não é definida pelo homem, mas pela máquina.
O tempo humano, marcado pelos ritmos biológicos, é substituído pelo
“tempo da máquina”, marcando pelos ponteiros do relógio. A pessoa
já não dorme quando sente e acorda quando já não sente sono, mas,
sim, numa hora que lhe permite começar o trabalho no momento definido
pela fábrica, não come quando sente fome, mas no horário determinado
como o de almoço, não para de trabalhar quando já está cansada, mas
apenas no final de seu expediente. Talvez
a principal conseqüência da Revolução Industrial tenha sido essa
mecanização do tempo. e todas as decorrências que ela tem para a vida
humana. Mas uma outra, também bastante importante, foi o processo de
urbanização. Antes, a maioria das pessoas vivia no campo, trabalhando
na agricultura. Mas o trabalho nas fábricas as atrai para a cidade, com
promessas de uma vida melhor, na qual se trabalhe menos e se ganhe mais.
Esse êxodo rural causa uma mudança profunda na estrutura da família
patriarcal. No campo, as famílias são grandes e o pai é o centro
dela, a maior autoridade. Nas cidades, as famílias se fragmentam. Também
isso terá sérias conseqüências para a sociedade tecnológica. O
terceiro e mais recente aspecto da formação da sociedade tecnológica
é o que podemos chamar de automação da sociedade, e acontece a partir
da metade deste século, com a invenção do computador. O tempo da máquina
se acelera quase ao infinito, pois os computadores processam milhões de
informações num tempo humano encontra-se ainda mais distante, as
pessoas têm de se subordinar cada vez mais aos ritmos impostos pelas máquinas. A
sociedade hoje é marcada pelo fluxo das informações e pela velocidade
das transformações. Nesse sistema científico-tecnológico, o homem
perde seu lugar, transforma-se num número. A Crise dos valores no mundo contemporâneo Nos
tempos modernos, experimentamos uma inversão dos valores morais que são
o fundamento da ética. O desenvolvimento da ciência e da tecnologia
foi tão grande rápido e intenso que assumiu dimensões inimagináveis.
Diante desse espantoso e vertiginoso desenvolvimento, o homem foi
empalidecendo, perdendo sua posição central. O
trabalho alienado que, como já vimos, transforma o trabalhador em mais
uma mercadoria faz com que o homem perca sua capacidade de ser sujeito
das situações. Manipulado no universo do trabalho, manipulado no mundo
do consumo, o homem vai perdendo sua “humanidade”. Na
sociedade capitalista, o dinheiro é que ocupa o centro das atenções,
uma pessoa vale dinheiro que possui os que pode produzir. Você mesmo já
deve se referido a um colega como: Ӄ aquele que tem uma moto
preta” ou “aquele do Gol vermelho”, por exemplo. O psicanalista
Erich Fromm caracterizou nossa sociedade como aquela que dá muito mais
importância ao Ter do que ao ser: é por isso que uma pessoa vale, e até
mesmo é identificada, pelo carro que possui e não por aquilo que ela
de fato é: um bom amigo, um cara simpático e etc. Isso
tudo mostra que, nos dias de hoje, as pessoas já não têm o ser humano
como o valor fundamental, mas, sim, o dinheiro, o lucro. A pergunta básica
que se faz ao planejar uma ação é: “O que eu vou ganhar com
isso?”. Podemos compreender, assim, alguns fatos aparentemente
incompreensíveis: acidentes que acontecem em edifícios e matam e ferem
dezenas de pessoas porque houve algum tipo de economia na construção,
pessoas que morrem em hospitais porque a verba repassada pelo governo já
não atende à ganância de seus donos, o investimento de fortunas em
projetos mirabolantes, ao passo que parcela enorme da população passa
fome, vive nas ruas sem casa, escola, sistema de saúde, sem o mínimo
necessário para uma sobrevivência com dignidade. Os
valores que regem nossa sociedade e são levados em conta para as ações,
seja das pessoas que ocupam altos cargos administrativos, seja pela
criança que pede dinheiro no seminário da esquina, já não têm o
homem como objetivo central. O que importa é garantir o próprio lucro,
venha ele na forma de milhões de dólares ou de uma moedinha de dez
centavos. Quando
nos voltamos para o âmbito da ciência, a realidade não é diferente.
A ciência, como se fosse um ser vivo, rege-se por uma lei interna que a
impede a um crescimento cada vez maior. Com o crescimento da velocidade
da produção de conhecimentos científicos, ela acaba por
“atropelar”o ser humano. Se, no princípio, a ciência
desenvolvia-se para buscar respostas para os problemas de sobrevivência
do homem num mundo adverso com o tempo, ela passa a se desenvolver por
si mesma, porque o próprio conhecimento se torna um valor a ser
perseguido. Em outras palavras, uma coisa é você precisar dominar
determinados conhecimentos para resolver certos problemas (por exemplo,
se precisamos encontra a cura de uma doença, precisamos dominar
conhecimentos de biologia, fisiologia humana, farmacologia e etc.),
outra, muito diferente, é correr atrás de mais conhecimentos
simplesmente para ter mais conhecimentos. No
processo histórico do desenvolvimento científico-tecnológico, muita
coisa foi produzida visando à melhoria da qualidade de vida das
pessoas. Mas muita coisa também foi produzida segundo outros
interesses. A bomba atômica é um lamentável exemplo de melhorar a
vida, acaba com a vida de milhões de seres humanos. Podemos então
perguntar: O que levou os homens a produzi-la? Se examinarmos os homens
de governo, a resposta é clara, a bomba atômica serve como um
instrumento de poder, de intimidação, uma forma de dominar os demais.
Mas e os cientistas que se envolvem no projeto, também eles buscavam
poder? Alguns provavelmente sim, mas as maiorias não, estavam tão
envolvidos com o desenvolvimento do conhecimento científico que
simplesmente não tinham tempo para se preocupar com as suas conseqüências.
Podemos mesmo dizer que eles foram “usados” pelos homens de governo,
que sabiam muito bem o que queriam. Isso
só foi possível porque, no centro dos valores, já não estava a promoção
da vida humana, mas o lucro e o desenvolvimento do conhecimento (que,
por sua vez, pode ser uma ótima forma de gerar dinheiro). Ética, cidadania e possibilidades de futuro Os
valores são criações humanas e não entidades abstratas e universais,
válidas em qualquer tempo e lugar. E que a ética pode ser compreendida
como uma estética de si. Isto é, como a atividade de construir nossas
próprias vidas como um artista pinta seu quadro. Isso significa que
construímos nossos próprios valores, colocando nós mesmos como valor
fundamental. O
fato de afirmamos que devemos, cada um de nós, construir a própria
vida não deve ser entendido, porém, como um apelo ao individualismo. A
afirmação da individualidade, da singularidade de cada pessoa que deve
ser respeitada em suas opções e ações não significa que cada um
deva viver isolado dos demais. A singularidade e a criatividade podem e
devem ser preservados em meio à coletividade. Mas o indivíduo pode ser
solidário com seus semelhantes, o filósofo Jean-Paul Sarte dizia que,
quando elejo a mim mesmo, estou escolhendo toda a humanidade. Vamos
refletir um pouco sobre essa afirmação. Se escolho a mim mesmo como
valor, isto é, como fundamento de minhas escolhas e de meus atos,
resolvendo construir minha vida como singularidade, como um obra de
arte, estou ao mesmo tempo, assumindo que essa condição é possível
para todo e qualquer ser humano. Não posso escolher a mim mesmo negado
os outros, afirmando que a condição de minha criatividade, de minha
diferença, seja a de que todos os outros sejam uma massa uniforme.
Minha singularidade não pode ser construída sobre a mesmice dos
outros. Se escolho a mim mesmo, escolho todos os outros que são tão
humanos quanto eu, o que faz com que eu deva aceitar que a singularidade
seja possível para todos, e a sociedade trona-se uma multiplicidade de
diferentes indivíduos criativos. O
que estou afirmando é que compreender a ética como uma estética da
existência não deve ser visto como uma atitude solidária, particular,
mas, sim, como um empreendimento coletivo, solidário buscar o meu
prazer, minha realização, mas também o prazer e a realização do
outro. A
sociedade tecnológica se foi capaz de causar tantos problemas para o
homem é, por outro lado, a possibilidade de realização da
singularidade. Até
aqui, vivemos a massificação. A criação e o desenvolvimento de meios
de comunicação cada vez mais potentes e abrangentes e o
desenvolvimento da informática tem contribuído para que a alienação
e a falta de criatividade e, conseqüentemente, a dominação seja cada
vez mais intensa. A
ficção cientifica é pródiga em exemplos o romance 1984, de Geoge
Orwell, mostra uma sociedade massificada, em que as pessoas são
vigiadas por telas de televisão (que ao mesmo tempo são câmeras
servem tanto para captar nossa imagem quanto para trazer imagens até nós)
que estão por toda parte, nos locais de trabalho, nas casas, nas
ruas... E aqueles que ousam pesar de forma diferente são logo
descobertos para o Ministério do Amor, um imenso prédio destinado á
tortura, que promove uma lavagem cerebral no individuo, tornado-o apático
aos apelos da realidade e apenas mais uma “peça da máquina”, sem
vontade própria. O curioso é que nesse processo de dominação a
linguagem ocupa um lugar de destaque criam a novilíngua, uma nova língua
que resulta da junção de palavras e da conseqüente diminuição do
vocabulário. A cada semana é lançado um novo dicionário, cada vez
menor, e as pessoas ficam proibidas de usar as palavras que já não têm
existência oficial. Isso mostra muito bem que nosso pensamento depende
de nossa linguagem, quanto mais rica a linguagem mais produtivo o
pensamento. Quanto mais pobre a linguagem... Mas
a realidade não precisa ser essa. Depende de nossas escolhas e de
nossas ações o que faremos de nossas vidas e do mundo em que vivemos.
Se vivermos como marginais da política, não assumindo nossas
responsabilidades pelas decisões de cunho mais amplo, acabaremos por
viver um mundo que não queremos e uma vida que não escolhemos. Mas, se
resolvermos agir como sujeitos de nossa vida e de nosso mundo, podemos
pintar os quadros que nossa criatividade permitir. Se
recolocarmos o ser humano como valor fundamental, a ciência e a
tecnologia podem nos permitir ações antes impossíveis. Com as redes
de computadores, podemos hoje nos comunicar com qualquer parte do mundo
de forma praticamente instantânea. Se tivermos terminais de computador
de fácil acesso a toda a população, teremos uma infinidade de informações
disponíveis para todos e para qualquer um, o que certamente
revolucionará as possibilidades de educação.
A informática possibilita hoje uma prática democrática que
nunca antes na história foi possível. Já explicamos em capítulos
anteriores que a democracia hoje está restrita a uma representatividade
pelo voto, não há como garantir a participação direta de todos. As
redes de computadores, por outro lado, permitirá uma ação direta de
toda a população, uma efetiva participação na tomada de decisões e
também em sua implementação. Um exemplo, o governo está sendo
pressionado a tomar uma decisão que significará um grande
investimento de dinheiro público, sem que o retorno seja
garantido, mas não poderá tomar essa decisão sozinho, precisará
consultar toda a população. Em pouquíssimo tempo, será possível que
cada um opine, seja em seu computador pessoal, seja em terminais comunitários
instalados em locais estratégicos em cada bairro. A responsabilidade de
decisão deixa de ser uma das poucas pessoas para ser, de fato,
responsabilidade de todos. Poderemos resolver onde aplicar nosso
dinheiro e verdadeiramente fiscalizar o que está sendo feito com ele,
se revertem em frutos para nós ou apenas alguns privilegiados. Isso
parece ficção científica? Pois os meios tecnológicos para a sua
realização já existem, falta o empenho de todos para que se efetive.
No fundo, aquilo que estamos chamando de singularidade é condição
básica para a cidadania, e vice-versa. Só podemos ser indivíduos
singulares, senhores de nós mesmos, numa sociedade aberta, em que a
cidadania exista de fato como participação de todos, assim como só
pode haver efetiva cidadania se os indivíduos são livres, singulares e
participativos na comunidade.
O futuro está aberto, Se ficarmos na defensiva, esperando que os
outros (os políticos, os cientistas, os filósofos e etc.) resolvam as
coisas por nós talvez mais cedo ou mais tarde acabemos por viver numa
sociedade muito parecida com aquela descrita por George Orwell em 1984.
Mas, se resolvermos tomar as rédeas de nossas vidas particulares e das
vidas política em geral, ou, para falar em termos filosóficos, se
assumirmos com consciência e responsabilidade tanto nossas escolhas éticas
quanto atos políticos, estaremos nos constituindo como verdadeiros
cidadãos.
É urgente que o ser humano seja recolocado no centro da problemática
dos valores. Se formos capazes de fazer isso, a ciência e a informática
podem ser instrumentos poderosos tanto para possibilitar uma ação
cidadã efetiva quanto para minimizar os problemas da miséria, material
e espiritual, que nos assola nesta transição para o terceiro milênio.
Acreditamos que a filosofia pode nos guiar por esse caminho tortuoso. "Bibliografia"
Editora Atlas – 2.ª edição – São Paulo - 1997
Agir Editora – Rio de Janeiro 1977 "Conceitos Fundamentais da Ética" (páginas 34 a 39)
Editora Brasiliense
Editora Mandarin
Editora Brasiliense
Editora Campus – Rio de Janeiro -1998
Editora LTR
Editora Graphbox – São Paulo – 1990
Editora Rei dos Livros – 2.ª edição – Lisboa – Portugal
Editora Tecnoprint – Rio de Janeiro
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